segunda-feira, 9 de março de 2015

O perdão e a culpa.




Isto -o quadro- é um Vladimir Kush.
Dos meus preferidos.
E a letra desta música, especificamente, me diz ao que vem desde que ouvi pela primeira vez.
Alguém, na infinita capacidade associativa humana, juntou as duas coisas numa só. Brilhantemente, aliás.

Essa imagem automaticamente me remete a uma frase do Hesse de que gosto muito:

A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer, precisa destruir um mundo.



Um Mundo.

O futuro do ovo não é muito variável: ou vira ave ou choca.
A condição humana também não é muito diferente disso: ou o homem se liberta ou simplesmente não vive.
A diferença humana tá na consciência de que há um mundo lá fora.

Nossa alma é selvagem.
Nela moram nossos instintos primitivos.
Ela busca ser plena, sem refreios.
A alma é aquilo de mais puro que há de nós em nós mesmos.
A alma não cabe no ovo.

Enquanto se está no ovo, enquanto se está dentro da caverna, observando pela fresta, existe a proteção, mas existe também um bloqueio. Real. Físico. A casca. O muro da Caverna. E em algum momento é preciso romper com isso e ir.
É preciso querer sair do ovo... ainda que tirar as cascas da pele doa.
É preciso seguir em frente... mesmo com medo de cair.
Do contrário: a alma, essa coisa selvagem, choca.

E a partir do momento em que se rompe com o Mito da Caverna -a ignorância- e se tem a consciência de que ir é preciso e ainda assim, teima-se em manter tudo como está e esteve, nasce a culpa.

A Culpa.

A culpa é essa coisa que te assombra como quem aponta a tua capacidade potencial e aquilo que você faz dela. [Ou não faz.]
A culpa é essa coisa que te denuncia quando você sabe que seria capaz de ser melhor e não foi.

O conceito de culpa caminha junto dos conceitos de 'algoz' e 'vítima'. 
Pessoas que se vitimizam, passam uma vida procurando culpados. 
Algozes conscientes se culpam por criarem vítimas mundo afora.

Quando calha da tua tomada de consciência te mostrar que você é seu próprio algoz e que transforma a si mesmo em vítima é que a coisa fica séria: um lado teu te culpa, enquanto o outro berra por socorro.
E nessa hora é que, você, sua própria vítima, sente peninha de si mesmo, se perdoando por... não romper com as amarras e seguir.

Culpa, essa coisa que serve como freio.

Freio este que, quando é social, tem bastante serventia, do contrário, mataríamos por bala de goma, ou roubaríamos pra ter aquilo de que se precisa sem grandes dramas. A culpa, neste caso, é o filtro de até onde se pode ir. No coletivo.

Em contrapartida, quando o freio da culpa é pessoal... vira o autoboicote preferido de quem teima em não sair do ovo e crescer, filtrando, inclusive, até aonde ir. 
E é nessa hora que o processo de se munir de coragem e seguir é quebrado, como se merecedores não fôssemos de seguir adiante: quando uma barreira realmente se coloca entre a gente e aquilo que seria a vida, a covardia se achega, dizendo que aquela barreria ali pode não ser ultrapassada.

E aí vem o medo. E a paralisia.

E paradoxalmente, a culpa tem uma só serventia: impulsionar pra mudança.
Do contrário, é melhor fingir demência e voltar a dormir. Lembrando que dormir, por definição, é repouso e que repousar não é viver, apesar de fazer parte do processo.

Mas, ok: FAZ PARTE do processo, mas não É o processo.
Assim como o ovo ainda não é ave.
É preciso deixar de dormir para se transformar em ave.

Sendo assim, a cada vez que você se perdoa por temer/dormir/não ir, você se conforma com a tua condição. Tanto de algoz, quanto de vítima de si mesmo.

Você vira Vítima da Culpa por ter se dado o Perdão.

"O perdão é o que possibilita o nascimento da culpa".

O perdão pode ser nobre em determinada circunstância, mas... por definição, perdoar é se conformar. 
Quem não se conforma com determinada coisa, não perdoa.

Eu costumo não perdoar. Não perdoo por convicção. Perdoar significa passar por cima e esquecer. Conformar-se.

Perdoar não é o caminho leal. Não acho leal perdoar pessoas.
Lealdade a si e ao mundo é seguir em frente apesar de.
Você faz, você arca. E segue. Porque vale a pena seguir, mesmo que.

Seguir sabendo que toda ida pode possibilitar uma volta.
É preciso mandar embora a culpa -sempre tão pesada- pra que se possa ser impulsionado pela coragem de ir.
É preciso saber que 'tudo se compõe e se decompõe' pra que se possa ir sem medo. E culpa por errar.
É preciso saber que a 'velocidade que emociona é a mesma que mata' e que a vida não te espera ter coragem.
É preciso saber que é possível lidar com o fato de que o 'sorriso antigo vire lágrima barata'. E que o processo de crescimento mora nesse movimento.

Todos os caminhos são passíveis de retorno, menos o 'ignorar'.
Quando uma mente se expande, nunca mais ela retornará ao estado original, disse o cara da Teoria da Relatividade.

Caminhos de ida e volta são relativos. Só não é possível parar. Quando se quer viver, obviamente.
'O automóvel tem de seguir, em algum momento, cego pela estrada iluminada de sol'.
Porque só conhecendo o sol é que se pode lidar com a sombra.

As existências são medidas nas ausências. E vice versa.
Viver é alguma coisa no meio dessa movimentação toda.

Viver é sair da ausência de vida. 
Viver é voar. 
Voar é arrebentar com tudo, é arrancar casca e pele, se preciso for.
Voar é libertar a alma.
Que pretende ser plena.
E o caminho da plenitude tá na permissão dada a esta alma para que viva experiências.
Só as experiências nos fazem vivos. 

É preciso viver pra se estar vivo.
É preciso romper.
É preciso doer.

É preciso não se perdoar e nem se culpar, mas seguir.









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O quadro do Kush se chama "Sunrise by the Ocean", acrílico sobre tela, de 1965.
A letra e música são do Paulinho Moska, O Phodda.
A frase do Hermann Hesse tá no seu "Demian".
O Mito da Caverna é a famosona teoria do Platão.
E o conceito de que uma mente quando se abre, jamais volta ao seu estado original é do Einstein, esse ilustre desconhecido.






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