terça-feira, 12 de março de 2019

Guerra de Almôndegas.

Era Truco, eles diziam. 

Eu não sabia jogar. Eu nunca soube jogar. Absolutamente nada. 
Eu não sei jogar nada. 
Eu não jogo. 

Sei raciocinar. 
Sei racionalizar. 
E me botasse no Xadrez: bora na aposta de quem ganhava de quem. 
Eu fazia sucesso nessa hora. Junto da minha Melhor Amiga da época. Minha Irmã até hoje: me ensinou muito na vida. De Xeque-Pastor a como ser um ser humano melhor. 

Raciocínio lógico, apenas. Essa era a minha parada. A minha pegada. Álgebra. X ao quadrado divido por 4 igual a 4. X linha e X duas linhas. Fórmula de Bhaskara e o dano do CFC no efeito-estufa. Sintaxe. 

Daí ninguém me segurava, mas Truco... não é lógico. É malandro. É roubalheira namoral. 
Não sei roubar no jogo: eu baixo as cartas. Eu não sou namoral. Eu sou. Ponto. O namoral fica por conta de quem achar que deve. 

Sou boa na Canastra/Buraco: aprendi com meu Pai. Daí tive escola, mas se você pensar bem: a Canastra coleciona cartas e avalia o adversário, o Truco usa cartas. E pessoas. O psicológico delas. Daria um estudo Antropológico. 

O Truqueiro USA cartas e brechas. 

Eu não sabia jogar, eu nunca soube usar nada, mas sabia que trucar era a hora do perigo. 

Eu achava extremamente sensual aquele mundo de Cromossomos Y, na flor da idade, cheirando a hormônio, batendo a mão nas mesas do refeitório e gritando #truco!. É 3! É 6! Pede 12! 

Eram muitos. Era a turma mais sensual da escola. Uns 16 caras, talvez. Os abusados da escola. 

Hoje, pensando bem, eram todos lindos. Cada um a seu modo. 

Descobri um pouco mais tarde que o normal das meninas o que era paixão. 

Eu tinha lá um encantamento com um menino filho único e mimado que era -ACREDITEM!- assistente de palco de uma das nossas musas infantis de entretenimento, mas era um encantamento do tipo "minha Mãe iria adorar esse cara lá em casa". E, de fato: teria gostado. Certamente. Educado, viajado, branco, classe média, nerd, enfim. O protótipo da família tradicional brasileira. Hoje, quando lembro, penso "eu teria ajudado ele a sair do armário, fácil: precisava". 

De qualquer modo, num belo dia de #truco, eu descobri que tava apaixonada pelo "Meu Melhor Amigo" -ai, que puta coisa clichê na minha vida, né?-. E não era só isso: ele namorava a Minha Melhor Amiga. Essa, Irmã até hoje. 

E pior: tentou forçar a barra pra ficar comigo num dia em que ela tinha viajado pra ver a família fora de SP. 

Eu fiquei indignada. Não porque não quisesse ele, mas porque achava a situação absurda: que confusão de sentimento! Ela vinha primeiro em qualquer circunstância! Minha Brotha, Mano! VSF! 

Por fim, nesse dia ele tentou. Eu disse não. É óbvio que diria não. E pior: contei pra ela. Não sei mentir. Nunca soube. 

E ele era o "pior" deles. O mais sarcástico, o mais irônico, o de história familiar mais difícil. O negro. O pobre. O Indomável. O da bomba dentro da privada do banheiro. 

Eu sabia quando e onde. Hora. E ficava na muquiada. 

Intervalo entre as aulas já no grito. Dando a hora no relógio. 

— Vai fazer xixi agora porque hoje o bicho vai pegar. 
— Blz. Tô saindo. Vem comigo e segura meu moleton (cobria minha bunda: eu morria de vergonha do tamanho dela) do lado de fora. Já saio. Pede pra eles esperarem eu sair, PFV! 
— Vai logo, Cá! Tá tudo programado. 

Eu sempre gostei, como Clarisse, daquilo que alça voo e cai feito um pato feio no chão. Sempre. O Torto me atrai. 

E aí que eu não jogava Truco. Eu não sei e hoje nem pretendo aprender, mas tinha um negócio que eu sabia perfeitamente fazer: pegar macarrão com almôndegas no refeitório. Toda semana era uma guerra. Quartas feiras. Talvez meu amor pelas Quartas tenha começado ali. 
Guerra de almôndegas.


E eu posso até não saber trucar, mas acerto almôndega no olho via colher como ninguém. 

Ele questionava a sociedade e trucava o mundo. 

Eu, borrava a camiseta dos incautos. E a cada borrão, eu ganhava um sorriso largo do outro lado da "trincheira" de mesas. 

Eu não tinha alvo certo, era pura diversão sádica: a gente era veterano. A Geral do bullying. O conceito é novo, mas a realidade existe faz tempo. 

Meu alvo incluía aí um menino que gostava de mim, gêmeo de outro. Dois galalaus que jogavam vôlei patrocinados pelo Clube do bairro. Eu não sabia dizer, às vezes, quem era um, quem era o outro. Ficaram conhecidos como "os gêmeos que gostam da Carola", mas na real era um só. Adolescentes não prestam. Escrotos. 

Depois me arrependi de dar um "vazare" no cara: ficou lindo. Totalmente cobiçável. Os dois, aliás. 

Só que eu gostava mesmo era do Truqueiro. 

A gente se esbarrou na vida muitos anos depois. Tivemos uma conversa divertida numa situação de Adão e Eva. 

— Eu não acredito que você gostava de mim. Eu era louco por você. 
— Você nunca prestou. Eu sofreria. Aos 14 eu era muito mais esperta do que hoje aos 29. Você não vale nada. 
— Você é uma idiota. Era de você que eu gostava. Eu teria namorado você, casado com você. 
— Agora já foi. Já casei, separei, a vida rodou e nosso tempo passou. A gente tem essas memórias. E a vida. 

Vidas que obviamente tomaram outros rumos, mas uma coisa é certa, e ele me ensinou: não sei trucar e nunca soube. E, definitivamente: não venha me pedir #6, porque eu vou baixar o jogo antes de chegar no #12. Mesmo perdendo. 

Em compensação: nasci pra borrar camisetas. 

Deixo lá a minha marca moleca no molho de macarrão. 

Se você achar que é ou foi pouco: compra Vanish que sai. 
E pede logo #12, que daí eu mando um Xeque-Pastor: em 3 lances, você deita o Rei. 

E assim é. 
É a vida. 

A Vida com V.