terça-feira, 16 de julho de 2013

Ela era covarde.

Deitada, ali na beirada da cama, ouvia Aquela Mulher que se dizia, contando suas histórias cotidianas. Reclamava do marido, falava das filhas, dos netos... enquanto passava a mão abaixo dos seios, voltando com um semblante de dor.
Ela observava. Ela era covarde.

A doença. A sem nome. E sem cura.

E Aquela Mulher continuava a falar. Reclamava da TV. Maldizia os políticos de esquerda. Bradava, defendendo a direita, muito provavelmente, numa tentativa inconsciente de se aproximar da classe social à qual costumam pertencer os direitistas.

E viva o progresso!

Progresso. O progresso estava ali. Progredindo pelo pescoço, num vermelho carne viva. Tão viva que ardia os olhos de quem via. Ela sentia arder. Doía e... Ela era covarde.

Ela visitava Aquela Mulher duas vezes na semana, numa tentativa de aliviar aquele pesar. Ia porque era parte dali. Ia... porque a amava. Ela sofria. Ela era covarde.

Como é fato que o palhaço carrega mais dor em si que qualquer pierrô: por fora, as gargalhadas -que Ela fazia serem também dAquela Mulher- serviam pra esconder o desespero calado, a enorme sensação de impotência diante daquilo tudo. Ela se desenganava. Ela era covarde.

Ela se via nAquela Mulher.

Recentemente, Ela também descobrira a doença em si. A maldita. No começo, bem verdade. E por sorte dentro do azar: estava praticamente curada, em plena finalização de tratamento. Mas... Ela olhava Aquela Mulher e pensava que... ela também se curara um dia. E como erva daninha, como um comichão, como uma coisa não dita: a doença voltara. E agressiva. E raivosa. Como se houvesse ali de quem se vingar. Como se, de doença, pudesse passar a ser vida. Como quem, de fato, toma pra si uma vida. Ela temia a falta de vida. Ela era covarde.

Ela olhava Aquela Mulher com admiração. Oito anos dividiam a descoberta da enfermidade pro agora: era muita coragem. Determinação. Insistência de vida.
Aos poucos, Ela ia se despedindo dAquela Mulher. Achava mesmo que Aquela Mulher deveria ser eterna. Como são eternas as mitologias, ou as crenças. Ela era ingênua. Ela era quase besta, de tão ingênua, acreditando que fosse possível jamais permitir que Aquela Mulher partisse, mas compreendia que, em algum momento, Ela não mais teria Aquela Mulher ali, se dizendo. Ela sentia saudade prévia. Ela era covarde.

"Eu já cansei."

Ela conhecia bem Aquela Mulher. Sabia que, ao ouvir isto, significaria a chegada do começo do fim: a coragem sempre tão presente ali, nAquela Mulher, dava lugar à exaustão. Uma exaustão legítima, aliás. Ela sentia aquele cansaço como seu. Ela era covarde.

"Eu tenho tido dificuldade de engolir coisas sólidas... líquido vai bem. Sólido: não. Tô achando que vão querer fazer traqueostomia, viu? Eu não vou deixar!"

Ela ouvia, dizendo qualquer coisa que afirmasse em contrário, mas com a certeza de que, se preciso fosse, sim: fariam. Não que Ela concordasse, mas não estava no seu alcance as decisões médicas.
Tantas vezes, Ela ouvia, calada, Aquela Mulher. Em realidade, fazia cara de quem ouvia, mas dentro era um barulho ensurdecedor: de cabeça pensando e coração berrando. Ela sangrava. Ela era covarde.

Ela era covarde.
Ela se via covarde.
Perto dAquela Mulher: Ela era muito covarde.
De uma covardia quase egoísta, não fosse o pranto habitual na volta pra casa, desde que havia percebido que Aquela Mulher perdia na corrida contra o tempo. Devagar, mas perdia. Como areia passando de um lado a outro da ampulheta, mas perdia.

Aquela Mulher perdia.
Perdia Ela também.
Perdia Aquela Mulher.
Perdia, mas com a certeza de que teria de aprender a ganhar no próprio jogo. Não haveria empate: Ela tinha de ganhar. Se Aquela Mulher vencia há anos a peçonha da serpente... porque é que Ela aceitaria perder? Pro quê quer que fosse?
Mas... Ela era covarde...

Olhava Aquela Mulher com a certeza mais que absoluta de que deveria se despir do quê não era. Do quê não era porque nunca foi, do quê não era pra ser, do quê jamais ela deveria ter sido. De tudo o quê diz 'não' antes mesmo de ser concebido ou assimilado: era necessário despir-se. Até mesmo porque Ela era covarde.

Aquela Mulher -além de tantas outras coisas- a ensinava -ali, quase se despedindo- que era preciso aceitar ser.
Simplesmente ser.
Ainda que isso significasse carregar, em si, carnes inflamadas, cor de carmim: paradoxalmente, também configuravam vida.
Havia vida ali. Era roubada dAquela Mulher a cada segundo, mas havia vida. Pulsava vida. Por toda uma vida, pulsou Vida.

Sim.
Pulsou.
E ainda pulsava.

E pulsará -a rebote- dentro dEla, pra sempre.
Ela era covarde.
Perante Àquela Mulher.
E só.

Ela era covarde.
Ela foi covarde.
Ela jamais seria covarde.
Ela aprendeu a nunca ser covarde.

Aquela Mulher nunca foi covarde.
Foi com Aquela Mulher que Ela aprendeu a destemer.

Aquela Mulher sempre disse a Ela que nunca seria possível ser covarde porque...

... não há cova quando a carne ainda arde.



Um comentário:

Djair Rod Souza disse...

A covardia... O tema deve estar no ar, pois também tenho pensado muito sobre ele... Que bom que não te acovardastes e colocastes o texto pra fora, isso é coragem!

http://prajalpa.blogspot.com